16 de out. de 2010

O artista e sua arte: uma prece inacabada


Encorpa-se a noite, logo os menos obstinados abraçam o sono, acomodam quietude em dormente esquecimento. Em silente recolhimento estaca-se o artista diante do cavalete no exercício de sua messiânica vocação; tornar uma experiência pictórica a extensão de sua própria personalidade. Nesta quadra de tempo não há mediação entre ele e as demais coisas, só existem as tintas, os pinceis e a tela. No mais, a música que embala seus mais essenciais requisitos.

Todas as companhias são dispensáveis, a solidão dedica-lhe especial acolhida. A solidão sua consorte genitora.
No fazer não reside todo seu intento, pois, há um tempo entre a agonia de uma espera improdutiva e o êxtase nascente da imagem. Agonia e êxtase que encontram vasto abrigo em seu espírito tão afetável pela sutileza relativa do belo. A exigência por tornar aparente uma beleza desapegada das convenções consome suas forças mais vitais.

Ele freme, ele treme, o suor irriga a face rabiscada pelo hábil buril do tempo. Nesse instante ele é o paradoxal soberano de seu ofício, sendo possuidor dos meios e procedimentos para sua mais custosa confissão e possuído pela ansiedade por uma aceitação geral em que se rende a uma altiva virtuose.

De parca reza, inábil com as palavras, confidencia seus pecados com as mãos esperando que sua arte conduza sua vida a manifesta redenção. A vida que não se separa de sua arte transforma o espectador em testemunha de seu drama. O espetáculo público a que, mais adiante, submete sua pintura, nada mais é que sua entrega muda aos olhares que podem absolvê-lo de uma injúria permanente e mantê-lo aceso por um tempo a mais.

Não é o tempo, nem a doença ou qualquer outro artifício de esgotamento que lhe tira a vida, a clara indiferença é que o consome de pouco em pouco. Em certa medida de Caravaggio a Rembrandt, de Van Gogh a Rothko, todos padeceram desse mesmo mal.

Enquanto a noite se aprofunda em sereno negrume ele se empenha em embelezar o registro de sua passagem por estes efêmeros prados. Não tolera a possibilidade de passar em branco, ou o que é pior, deixar que outros exponham seu íntimo a não ser ele mesmo, sendo este o único poder que ele, com muito custo, nas entranhas retém. Ao tempo que pinta sua vida apresenta as vidas que virão depois de si, sempre suspeito de escárnio, galgando a escada dos santos.

A longa luz vacila ao meio da madrugada em seu reino de sonho. Estremecem as forças da manhã antes que a aurora debruce sobre a relva e seus olhos não sobrevivam às lágrimas. Sua pintura repousa como uma prece inacabada ante o corpo exaurido de seu artífice senhor. Sua obra, a última visão antes de ensaiar a derradeira letargia, é a que depositará no altar à beira de seu leito inaquecido, posseiro de suas tantas indormências. No ar violáceo do atelier, sua capela erigida com os escombros do tempo, agradece a Deus o dom com o sangue agitado em seu já cansado coração.

De seus olhos, os olhos que sobrevivem por um breve instante, há que ficar uma parte do que conheceu dessa hora vacilante, desse campo de estrelas tíbias, dessa renúncia que o faz expor ao esquecimento suas vísceras, a fonte de seus olhos e as partes indigestas.

Neste último sítio de encontros o artista tateia esquivo à fala, despertando sozinho em seu reino de sonho, numa solene distância sob o lampejo de um céu inexato, onde ele ainda possa trajar seus tácitos disfarces, à fundura de sua solidão, à altura de seu silêncio, à largura de seu espírito. Ensinando aos que acham por demais pesado a sentença de estar vivos, o desvelo das súplicas e o estar postos em sossego, enquanto o poente não se entende como um paciente anestesiado sobre a mesa.

O tempo que nele passa rompe um devaneio fundo. Tempo farto de seus minutos no seu quarto de silêncios brutos. Sob o vedado sol, presa da pálida fatalidade, deixa a vida incerta ser quem seja, e cumpre assim, o destino que lhe cabe.

FONTE: Carrari.. http://herdeirosdodeserto.blogspot.com/2010/10/o-artista-e-sua-arte-uma-prece.html

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